24/01/2024
É isso mesmo? A gente trata um câncer e outro pode ocorrer? Sim, é isso mesmo. Aliás, isso pode ocorrer com toda terapia anticâncer. Neste texto, vou traduzir para uma linguagem mais simples esse novo problema associado à essa terapia tão moderna: a célula T com receptor de antígeno quimérico. Mas daqui para frente, vou chamar essa terapia de CAR T cell, Ok?
De qual câncer estamos falando?
A história toda começou porque foi observada a ocorrência de linfoma de célula T, linfocitose de grandes células granulares T, e linfoma T cutâneo em alguns pacientes. E todas essas são doenças do linfócito T. Lembra que a célula infundida na terapia da CAR T cell também é um linfócito T? Então, essa possível correlação entre a célula T infundida e as novas doenças fez os pesquisadores e médicos ficarem alertas: será que essas novas doenças são derivadas das CAR T cells infundidas alguns meses antes? Para entender melhor, eles fizeram um teste de sequenciamento genético, e com isso puderam provar que essas novas doenças eram oriundas das CAR T cells.
Até o momento, o FDA (Food and Drug Administration, órgão dos EUA que regula a aprovação medicamentos, e monitora os efeitos colaterais depois da aprovação) conseguiu reunir 22 reportes de casos de doença linfoproliferativa T ocorridas após a infusão das CAR T cells1. Eles conseguiram dados mais completos de 14 pacientes, e para esses, o tempo para o aparecimento dessas novas doenças variou de 1 a 19 meses, e metade ocorreu no primeiro ano. Só foi possível provar que a célula de origem era a mesma que a CAR T em 3 pacientes. Essa limitação se deve ao fato desse teste não ser de fácil acesso, e ser muito custoso. Já foram infundidas cerca de 27000 CAR T cells nos EUA, e o número de doença linfoproliferativa T representa 0,08% de taxa de ocorrência. Essa taxa de ocorrência apode estar subestimada porque a forma que o FDA usou para reunir essas informações foi através de publicações (pelo menos em sua maioria) e não de reportes oficiais que deveriam ser feitos após a comercialização de uma droga, ou neste caso de uma célula. Não se estima que a ocorrência seja muito mais alta que esta estimativa, mas é extremamente importante que esses reportes sejam feitos e que medidas para melhor compreensão do problema possam ser implementadas. Eles inclusive disponibilizaram um número de telefone e o endereço do site para facilitar os reportes (1-800-FDA-1088, http://www.fda.gov/medwatch). A ANVISA também tem uma página onde profissionais da saúde podem reportar efeitos adversos importantes (https://www.gov.br/pt-br/servicos/informar-seguranca-do-medicamento-farmacovigilancia).
O FDA não fez qualquer relação causal entre os tipos de CAR T cell comercial (existem 6 aprovados nos EUA atualmente) e a ocorrência desse evento adverso. Ou seja, por conta do número muito pequeno de ocorrências, não é possível dizer que um tipo produza o problema mais que outro. Pelo menos até o presente momento.
E por que ocorreram essas novas doenças?
Para entender essa parte, vou precisar falar de como uma CAR T cell é fabricada. De forma bem simples, depois que o linfócito T é coletado do paciente (no caso da CAR T cell autóloga), as células passam por um processo de engenharia onde recebem um material genético novo. Essa nova codificação vai reprogramar a célula para produzir um receptor na superfície que é capaz de se ligar a um receptor na superfície da célula tumoral. A célula passa a expressar um receptor quimérico, e daí o nome célula T com receptor de antígeno quimérico, ou CAR T cell (chimeric antigen receptor T cell). Imagina que uma pessoa ganhou uma chave (receptor quimérico) nova para abrir uma porta (antígeno na superfície da célula tumoral) que antes ela não conseguia. E ao abrir essa porta, a pessoa joga um monte de inseticida lá dentro porque aquele quarto está cheio de barata.
A forma de levar esse novo material genético para dentro da célula é que parece ser a causa da ocorrência dessas doenças de células T. Todos esses produtos de CAR T cell comerciais usam um vetor viral, ou seja, um vírus é colocado dentro da célula, e esse vírus leva o material que se deseja que seja incorporado pelo código genético da célula para que ela passe a produzir a proteína nova de superfície. Acontece que quando um vetor viral é utilizado, essa incorporação genética pode ocorrer perto de um gene que pode ser modificado por conta da proximidade. Se esse gene for capaz de gerar um câncer (oncogene), a célula passa a ter essa nova característica. Para entender esse conceito vamos usar a função do piano. O piano é um instrumento onde ao apertar uma tecla, uma nota musical ou tom diferente será produzido. Cada tecla no piano tem um som único. Muito bem, essa é a mesma coisa com os genes. Para cada gene, uma função. Para que CAR T cell passe a produzir uma nova função (novo som é igual a receptor novo), ela precisa de um novo material genético (nova tecla). Apesar de não ser exatamente um gene inteiro, esse novo material cumpre essa função. Então, o vetor (mesma coisa que transportador) vai colocar essa nova tecla no piano, entre as teclas que já existem. Se ele conseguir colocar a nova tecla de forma “perfeita”, não vai atrapalhar o som das teclas antigas. Mas ás vezes, ele pode danificar as teclas que já existem ao lado da tecla nova, e aí, o sim pode não mais ser expressado (o gene perde a função), ou ser expressado de forma aberrante (um som novo muito alto, ou muito diferente). Se essa tecla danificada for um gene perigoso, um novo câncer poderá ser gerado. Essa relação do vetor viral causando doença neoplásica não é nova, e aprendemos bastante sobre isso com as terapias gênicas. Mas se acreditava que a maneira de direcionar o material genético que o vírus leva para regiões menos perigosas fosse mais bem sucedida no caso das CAR T cells. O que a ocorrência desses cânceres novos mostra é que ainda existe o risco de dar errado.
A maneira de se contornar esse problema é usando vetores não virais, ou com pedaços prontos de RNA que serão degradados, não causando mudança permanente. Esse nível de biotecnologia já existe, e já vem sendo testado em novas CAR T cells, mas que ainda estão em desenvolvimento2.
E o que pensar de tudo isso?
Bom, muito do que vou colocar daqui para frente eu extraí de uma publicação do Dr. Vinay Prasad3. Esse médico e pesquisador é uma referência para mim e para outros profissionais por conta da sua capacidade de ponderação.
Nessa publicação do JAMA (Journal of the American Medical Association), o Dr. Prasad pondera sobre o fato do número de ocorrências de neoplasia de células T ser pequeno, frente ao benefício da terapia. Mas, ele também salienta que as aprovações nem sempre estão sendo baseadas em estudos prospectivos randomizados. Sabemos que esse tipo de aprovação é necessário para atender à necessidade de pacientes cujas opções terapêuticas se esgotaram, mas não significa que não devamos ficar atentos à magnitude do benefício, que pode ser menor do que se espera. Por exemplo, só foi encontrada vantagem de sobrevida global usando CAR T cells em um estudo de linfoma difuso de grandes células B, e para mieloma múltiplo. Ainda não se provou que as CAR T cells comerciais aumentem a probabilidade de sobrevida de pacientes com linfoma folicular, ou linfoma de células do manto, por exemplo. Se realmente não houver essa vantagem, talvez não valha a pena para o paciente correr o risco de desenvolver uma doença linfoproliferativa T cerca de 1 ano após um tratamento para uma doença linfoprolifertaiva B. Algo a se ponderar.
Um ponto muito importante que o médico levanta é o uso de CAR T cells para doenças auto-imunes, tipo lúpus eritemaoso sistêmico. Nesse caso, por se tratar de uma doença crônica, o risco de desenvolvimento pode ser ainda maior do que o que se observou nas neoplasias de células B. No final do seu texto, ele ratifica que não se pode negar o avanço que as CAR T cells representam. Mas que é importante rever as indicações após a reavaliação de risco, e que os pacientes precisam estar cientes dessa possibilidade, ainda que improvável.
Pessoalmente, só participei de terapia com CAR T cells de forma limitada. Um paciente eu assisti pré terapia e acompanho no pós terapia, e a outra paciente coletou as células e será reinternada em breve para a reinfusão. Mas sempre me preocupo com a euforia que um novo tratamento causa tanto em pacientes como nos profissionais da saúde que os assistem. Sou especialista em transplante de medula óssea, e estudei terapia celular na França. Acho a terapia com CAR T cell simplesmente fantástica. Mas o tempo está mais uma vez mostrando que nada é perfeito. Precisamos conhecer mais sobre esse novo efeito colateral para evitá-lo, ou contorná-lo.
E se você é um paciente que recebeu ou vai receber CAR T cell, não se desespere com esse informativo. O objetivo deste informe é alertar a todos sobre um problema novo, e com isso nos tornarmos uma sociedade mais madura para fazermos as melhores escolhas.
- Verdun, N. & Marks, P. Secondary Cancers after Chimeric Antigen Receptor T-Cell Therapy. N Engl J Med NEJMp2400209 (2024) doi:10.1056/NEJMp2400209.
- Balke-Want, H. et al. Non-viral chimeric antigen receptor (CAR) T cells going viral. Immuno-Oncology and Technology 18, 100375 (2023).
- Prasad, V. T-Cell Lymphoma From CAR T-Cell Therapy—A New Safety Notice. JAMA (2024) doi:10.1001/jama.2023.27885.
Data: 24/01/2024
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