HEMATOLOGIA

Mielodisplasia

Se você chegou até aqui, provavelmente precisa ou gostaria de saber mais sobre esse misterioso diagnóstico: síndrome mielodisplásica, mais comumente chamada de mielodisplasia. É possível que você seja um (a) paciente, ou parente de alguém com esse diagnóstico, e muitas perguntas devem ter surgido na sua cabeça. Que doença é essa? Por que eu tenho essa doença? É contagioso? Tem tratamento? Tem cura? Vou morrer disso?

Achei melhor separar esse informativo em partes para ficar mais didático. 

Caso você goste de vídeo, no nosso canal eu explico o que você precisa saber sobre a Mielodisplasia.

O que é a mielodisplasia?

A mielodisplasia e a síndrome mielodisplásica são sinônimos, ou seja, significam a mesma coisa. Esta é uma doença da medula óssea. Isso, estou falando da medula óssea e não da  medula espinhal (que fica dentro da coluna). A medula óssea fica dentro dos ossos, e muita gente não sabe, mas a medula óssea é o órgão onde nossas células do sangue são produzidas. Já ouviu falar nos glóbulos vermelhos, glóbulos brancos e plaquetas, certo? Pois essas células são produzidas pela medula óssea e depois são liberadas para o sangue, onde serão distribuídas para os órgãos.

Na mielodisplasia, a medula óssea passa a produzir as células de forma irregular, com uma qualidade inferior ao ideal. Imagina que a nossa medula óssea é igual a uma fábrica de carros. Quando está funcionando de forma ideal, essa fábrica produz carros perfeitos. Mas se a fábrica não vai bem, ela passa a produzir carros sem porta, sem janela, sem retrovisor, ou até mesmo com o sistema de freio mal feito. Como consequência, o controle de qualidade da fábrica não deixa esses carros defeituosos serem vendidos na loja. O mesmo ocorre na medula óssea de uma pessoa com mielodisplasia: as células são produzidas com defeito e o sistema de qualidade não deixa ir para o sangue. Como consequência, o paciente pode apresentar baixa contagem de glóbulos vermelhos (anemia), glóbulos brancos (leucopenia) ou de plaquetas (trombocitopenia). Pode ocorrer com uma dessas células (unilinhagem), ou com duas (bilinhagem) e até mesmo nas três (trilinhagem). 

Por que esse

defeito de

fabricação ocorre?

No adulto, na maioria das vezes, a causa desse defeito de fabricação é adquirida, ou seja, a pessoa não nasceu com o problema, mas por motivos diversos, ela adquire esse problema. Não é o mesmo caso com crianças com mielodisplasia. Na criança, muitas vezes a causa é hereditária, ou seja, a criança herdou o problema da mãe ou do pai, ou dos dois, mesmo que os pais não apresentem o problema. Mas eu não sou pediatra, e vou me concentrar na mielodisplasia do adulto.

E onde ocorre esse problema de fabricação? São muitas mutações genéticas e epigenéticas que acontecem nas células do paciente com mielodisplasia. Acontece assim: cada célula do nosso corpo vem com um computador de bordo que é o nosso código genético. Esse código determina o papel de cada célula dentro do corpo (por exemplo, ele manda a célula do coração se contrair para bombear o sangue, e manda o nosso plasmócito produzir anticorpos contra uma infecção). Esse código genético pode sofrer uma mutação, tipo quando o programa do computador já não “roda” mais como antes, às vezes fica travando. Se essas mutações no código genético acontecerem nas células da medula óssea (células-tronco hematopoiéticas), e dependendo de muitos fatores complexos envolvidos nesse processo, o código genético alterado começa mandar as células a serem produzidas de forma irregular, com os tais defeitos descritos acima, impedindo que elas tenham uma qualidade boa como tinham anteriormente.

Essa doença

é contagiosa?

Não. A mielodisplasia não é contagiosa, e a na maioria dos casos do adulto, ela não é passada de pais para filhos (não é hereditária).

Por que eu desenvolvi mielodisplasia?

Na maioria das vezes, o envelhecimento é o principal causador de mielodisplasia. À medida que envelhecemos, nossas células vão perdendo a capacidade de reparar erros que podem ocorrer no código genético, ou de eliminar essas células defeituosas. Esses mecanismos de segurança envolvem processos intracelulares (que estão dentro das células) de reparo, e também a eliminação das células doentes pelo sistema imune. O envelhecimento enfraquece o nosso sistema imune, deixando-o menos vigilante e menos eficiente.  

Existem outras causas que podem levar a esses danos ao código genético. Por exemplo, tabagismo. O cigarro contém diversas toxinas que são mutagênicas, ou seja, que são capazes de danificar o nosso código genético, e que podem levar ao desenvolvimento de câncer e também da mielosiplasia. Uma outra causa para o desenvolvimento de mielodisplasia é o consumo de álcool. Sim, eu sei o que você está pensando. Mais uma pessoa dizendo que beber causa problemas. Mas não deve ser tão verdade assim… Infelizmente, é. O álcool é uma das substâncias consideradas mutagênicas, incluindo o risco de mielodisplasia, e não existe uma dose que seja considerada segura. Então, minha sugestão é de evitar a ingestão. 

A exposição a pesticidas e benzeno (derivados do petróleo) são também causas de mutações genéticas que podem levar à mielodisplasia. 

Existe tratamento?

Sim, existe alguns tratamentos disponíveis. Mas antes de falarmos de tratamento, é importante falarmos da gravidade. Ao fazer o diagnóstico de mielodisplasia, o hematologista também faz exames para calcular o prognóstico da doença. A avaliação prognóstica é uma forma do médico prever o que vai ocorrer nos próximos anos daquele paciente para que ele possa adaptar o tratamento e dar respostas aos questionamentos. É necessário deixar claro que nenhuma pessoa, médico ou não, tem a capacidade de prever o futuro de ninguém, e muito menos afirmar quanto tempo de vida uma pessoa tem. O que fazemos é estudar os desfechos de outros pacientes -ou seja, o que ocorreu com outros pacientes – de forma a estimar as probabilidades de ocorrência de problemas para um determinado paciente. O cálculo prognostico da mielodisplasia é feito com as citopenias (anemia, leucopenia, trombocitopenia), o número de blastos, e as alterações genéticas. 

O maior medo na trajetória do paciente com mielodisplasia é a transformação para uma leucemia aguda. É sabido que quanto mais jovem for o paciente, quanto mais blastos houver na medula óssea, e a presença de algumas alterações genéticas, maior é a probabilidade dessa transformação ocorrer. E para consertar esse problema só existe um tratamento: o transplante alogênico de medula óssea. Essa modalidade de tratamento deve ser oferecida para todos os pacientes com idade, condições clínicas, doador disponível e com mielodisplasia de alto risco de transformação. Para alguns pacientes com risco intermediário, também é indicado o transplante de medula óssea. 

Mas, nem todos os pacientes irão precisar de transplante ou poderão ser submetidos a ele. E nesses casos, existem opções de tratamento cujo principal objetivo é melhora a qualidade de vida dos pacientes.

Abaixo, descrevo as principais modalidades de tratamento excluindo o transplante. Uma ressalva importante é que não coloquei questões regulatórias, ou seja, o que é coberto ou não pelo SUS ou planos de saúde, e as indicações de bula. 

Tradicionalmente, para os pacientes com anemia o tratamento mais aplicado é a terapia transfusional, ou seja, transfusão de sangue. Esse tratamento muito antigo tem muitos inconvenientes. O excesso de transfusões leva ao acúmulo de ferro e ao desenvolvimento de anticorpos que dificultam as transfusões seguintes, além de não produzirem um efeito de longa duração.

Pensando nisso, os pesquisadores testaram a eritropoietina sintética no contexto da mielodisplasia e observaram uma diminuição da anemia nos pacientes com dosagem basal de eritropoietina baixa. E o que é a eritropoietina? Ela é um hormônio produzido pelos rins, mas que foi transformada numa droga sintética, e que tem como principal função o estímulo da medula óssea para produção de glóbulos vermelhos. Ela é dada de forma subcutânea em regime semanal.

Outra medicação para combater a anemia da mielodisplasia é o luspatercept. Essa medicação tem um mecanismo de ação mais complexo, mas basicamente, é uma proteína que se conecta aos ligantes selecionados da superfamília TGF-β, estimulando a maturação dos glóbulos vermelhos do sangue presentes na medula óssea, melhorando a sua função. Entretanto, os trabalhos mostram eficácia dessa medicação no subgrupo de pacientes que tem mutação do SF3B1 ou classificação de mielodisplasia com sideroblastos em anel.

Quando o paciente apresenta baixa dos leucócitos e não tem risco aumentado de transformação para leucemia aguda, pode ser tentada a administração de fator de crescimento de granulócitos (filgrastima) para aumento da contagem de glóbulos brancos. A eficácia é limitada na maioria dos pacientes.

Em relação à contagem de plaquetas, existem alguns trabalhos mostrando que o eltrombopag é seguro e eficaz, mas ele vai funcionar somente para alguns pacientes. Esse medicamento funciona estimulando a produção de plaquetas.

Quando o paciente tem uma mielodisplasia já num processo de transformação para uma leucemia aguda, o tratamento de escolha é o uso de hipometilante. Os dois maiores representantes dessa classe são a decitabina e a azacitidina. Os hipometilantes regulam o código genético, agindo “em torno dele”, ou usando um termo mais técnico, epigenética. Na mielodisplasia, ocorre uma hipermetilação , ou seja, existem mais radicais metila regulando os genes do que ocorreriam numa pessoa sem a doença. E ao usar os hipometilantes, esses radicais metila são retirados, permitindo que os genes voltem a funcionar de forma normal.

Mielodisplasia

tem cura?

Infelizmente, não existe cura para a mielodisplasia, a não ser o transplante alogênico de medula óssea. Mas, muitos pacientes desenvolverão a doença numa idade já avançada, e na forma mais leve, e apesar de não haver cura para eles, os tratamentos disponíveis poderão melhorar a qualidade de vida. Além disso, se o paciente for idoso, e a doença for de baixo grau, a probabilidade de transformação para uma leucemia aguda num breve espaço de tempo é muito baixa, o que na prática não faz muita diferença ter cura ou não. 

Se você recebeu um diagnóstico de mielodisplasia, converse com seu médico sobre a necessidade de tratamento, e quais estão disponíveis.